Depois de alguns meses regressa a Lisboa onde
desenvolve mais um projecto em arte urbana na capital, como Lisboa o motivou e
inspirou para o universo da arte urbana?
O curioso é que os dois projetos de arte de rua que
realizei em Lisboa partiram de projetos criados para situações “internas”, de
galeria, e que foram imediatamente seguidos de viagens para Portugal, o que me
estimulou a pensar formas de transformar estes projetos em algo transportável,
e que pudesse acontecer independente de uma exposição “oficial” em espaço de
galeria. As ruas foram a saída natural. O primeiro projeto já nasceu com
vocação para arte de rua, pois resultou de um convite para uma exposição de obras
de arte efêmeras em papel de seda, para serem coladas na forma de “lambe-lambe”
nas paredes da galeria, e depois descartadas. Como a exposição seria em junho, eu
criei algo similar às bandeirinhas de São João, que são usadas na decoração das
ruas em nossas festas juninas, que correspondem às festas dos santos populares
de Portugal. Então era já um projeto informado por práticas “de rua” que foi
instalado num espaço interno, naturalmente com um outro contexto e conceito,
que em Lisboa voltou para as ruas, acontecendo também em junho, misturado às
decorações para as festas dos santos.
Quanto à inspiração, nos dois projetos (Migração Monarca, em 2014, e Aposto, em curso agora em 2015) houve o
desejo de orientar estes trabalhos a partir de manifestações culturais
tipicamente lisboetas, e ao mesmo tempo mesclar os próprios projetos a estes aspectos
culturais que informam e guiam os projetos. No primeiro caso, as ornamentações
das festas dos santos populares, e no segundo, as fachadas azulejares. E também
ambos são elementos de aproximação ou de paralelo entre a cultura portuguesa/lisboeta
e a brasileira/carioca.
Quando você fala em arte
urbana, sinto a necessidade de fazer uma observação. O que fiz nestas duas
vezes em Lisboa trata-se mais de intervenção
artística no espaço urbano do que o tradicionalmente entendido como arte
urbana. No meu caso foram sempre projetos de uma escala discreta; não são
paredes inteiras, muros de 5 metros de extensão, ou esculturas monumentais. São
peças pequenas, infiltradas. Não são obras que cobrem e ocupam de forma
incisiva e chamativa um espaço e uma superfície. Meus dois projetos atuam como
pequenas inserções, peças que invadem quase como um parasita e que se agregam
ao hospedeiro maior e já existente. As peças aparecem mais pelo contraste que
provocam, por perturbarem ou provocarem o que já está lá, do que se impondo de
cima para baixo a um espaço. São peças que exigem uma aproximação, uma
intimidade, para que possam agir. Ficam dormentes até que você as ative com seu
olhar. Não gritam — sussurram. São
vírus, e não elefantes. E vírus podem derrubar elefantes.
Qual o adjectivo que utilizaria para descrever a
Lisboa de hoje em dia?
Não exatamente um adjetivo, mas acho o caso de usar a
expressão “work in progress”.
Como acha que a arte urbana contribui para a
cidade?
Na forma mais simples de se entender a questão, ela pode
transformar um espaço feio e brutalizado em um espaço mais estimulante, mais
vivo. Mas muito mais interessante do que isso, a arte urbana muitas vezes traz
em si um caráter de manifestação ou denúncia social, creio que foi mesmo esta
sua origem histórica, e isto pode estimular mais pessoas à reflexão de seus
problemas ou dos problemas do seu entorno ou de outras pessoas ao seu redor. Em
qualquer dos casos, se uma dada peça de arte urbana “funciona”, ela trará mais
dinamismo para as pessoas e espaços.
A arte urbana tem, a cada dia mais, deixado de ser
vista como vandalismo ou unicamente pertença das ruas. Tendo entrado em feiras
de arte, exposições e galerias, acredita que este processo pode enfraquecer a
arte urbana como forma de arte interventiva?
Pode ou não. Isto depende muito mais de cada artista, de
como ele lida com este “oficialismo”, com o enquadramento da dita arte urbana
por parte de galerias, museus e outras instituições culturais. Penso ainda que quando
a arte urbana deixa as ruas e vai para dentro dos espaços protegidos e fetichizantes
deixa de ser obviamente arte urbana, torna-se outra coisa, e esta transposição
não pode se dar de forma tão ingênua e mal pensada, e até oportunista em alguns
casos, como muitas vezes acontece.
Que diferenças vê entre a arte urbana no Rio de
Janeiro e em Lisboa?
Uma coisa que notei rapidamente aqui é que a arte urbana em
Lisboa é bastante institucionalizada, “séria”, quase oficial, enquanto no Rio
ela ainda guarda um caráter mais “rebelde”; é mais espontânea. Os artistas
urbanos de Lisboa são tratados por “senhores”, apesar dos gorros, tênis Converse
e jaquetas com capuz. São sujeitos que falam pausadamente, de forma quase
acadêmica às vezes. Eles são contratados ou convidados a fazer trabalhos sobre
espaços previamente escolhidos e determinados por órgãos ou instituições. Alguns
deles são verdadeiras estrelas, seus nomes são marcas comerciais, possuem uma
indústria por trás de si. Se por um lado é ótimo que haja na Câmara de Lisboa
um órgão que estimule a arte urbana (Galeria de Arte Urbana - GAU), por outro
isto tornou a arte de rua algo algumas vezes tão pesada quanto a “arte séria”
nas galerias e feiras de arte. Há também um perigo de excesso de controle sobre
o que pode ou não acontecer. Claro que isso também acontece no Brasil, mas é
exceção. Falei dos “espaços fetichizantes” antes, e percebo que aqui em Lisboa
isso acontece mesmo nas ruas, nos muros. Já houve caso de um grafite, algo que
deveria ser pensando como efêmero e vulnerável, mesmo quando “sob encomenda”, que
após ter sido “vandalizado”, providenciaram sua “devida restauração”, e ainda
por cima lhe aplicaram um verniz especial para que ele não fosse mais
“danificado” por terceiros. Já ouvi artista chamar de “cliente” quem o convida
para executar um trabalho, e dizer que trabalha “de acordo com o orçamento
disponível do cliente”. Não acho em nada ruim ou errado que os artistas de rua sejam
pagos por seu trabalho, acho corretíssimo, mas quando a prata vem antes ou
acima da arte, e não há arte se não houver prata, algo está estranho.
Em “Aposto” intervem em fachadas azulejadas da
capital, utilizando os espaços deixados pela perda ou roubo dos azulejos tradicionais.
Entre o chamar a atenção para este problema de degradação de fachadas, o
devolver uma imagem roubada ao espaço e o causar uma estranheza ao olhar, quer
pela intervenção, quer pelo desenho que inclui armas elaboradas com rendas,
qual dos motivos o inspirou mais e de qual deles surgiu esta ideia?
Eu recentemente, depois de quase 3 semanas imerso no
processo de intervenção urbana Aposto, me dei conta que já em 2011 havia
pensando um projeto de arte para Lisboa baseado em azulejos. Não era para o espaço
público externo, mas sim para a cave de uma instituição cultural, projeto este
que não aconteceu. E eram já azulejos de papel, temporários, descartáveis. Em
2013 fui convidado junto a mais 9 artistas de vários países para um outro
projeto que envolveria criar um painel de azulejos reais, cerâmicos, que seria instalado
em caráter permanente em uma fachada de algum imóvel devoluto de Lisboa,
projeto que não foi em frente por falta de financiamento. Acho que estes
projetos, mesmo que não concretizados, deixaram suas marcas em mim.
Outra coisa que sempre adorei, e que talvez esteja
inconscientemente por trás do projeto Aposto, é “colecionar”, na forma de
fotografias, os remendos que as pessoas fazem nas fachadas, preenchendo os
buracos deixados pelos azulejos perdidos com azulejos que muitas vezes não tem
nada a ver com o padrão original da fachada, gerando patchworks fantásticos.
Os seus azulejos de papel reúnem em seu desenho, a
renda, pertencente ao universo feminino e as armas, pertença do mundo masculino.
Joga com a identidade de género constante ao longo do seu trabalho. Quanto ao
azulejo em si, considera-o pertença do universo feminino ou do universo
masculino?
Os azulejos são um excelente exemplo de convívio e fusão
destes dois territórios, pois são um produto de manufatura, de indústria, do
mundo empresarial e comercial complexo, que tradicionalmente são vistos como do
território masculino, da força, do poder, da economia, mas que são peças de uso
ornamental, muitas vezes trazem flores, volutas, firulas, cores, e os
ornamentos são tradicionalmente encarados como sendo do universo feminino, do
terreno do delicado. Mas ao ornamentar, indicam maior ou menor riqueza do
proprietário, valorizam o imóvel, que é um bem patrimonial, que historicamente
é algo masculino; o legado de uma família sempre foi preferencialmente
transmitido ao primeiro filho homem. Este tipo de dualidade informa meu
trabalho. Quase sempre uso elementos produzidos e pensados industrialmente, em
larga escala, de forma impessoal, bruta, insensível, visando o comércio, o
lucro, mas para o consumo (estereotipado) feminino.
Que projectos se seguem?
Tive já o convite para duas exposições individuais no Brasil, que
acontecerão pouco depois de meu retorno de Portugal, uma em São Paulo e outra
no Rio de Janeiro, que de formas bem diferentes apresentarão resultados ou
derivações dos resultados das experiências nestes 40 dias em Lisboa. Os
convites partiram justamente do interesse que meu projeto aqui em Lisboa
despertou nas pessoas que me convidaram. Digo isso para frisar como é
importante se pensar no trabalho primeiro, na criação em si, produzir
independente de objetivos práticos imediatos, produzir em função de suas
necessidades íntimas, suas questões artísticas e filosóficas particulares, e
não produzir em função do que pode agradar ou “emplacar”, para só depois, em
decorrência de um produto final já bem amadurecido conceitualmente, e
plenamente realizado, colher resultados práticos (exposições, publicações,
etc.). É também interessante notar como um projetos de galeria no Brasil gerou projetos
de intervenção urbana em Portugal, e agora tudo retorna à casa, transformado.
Parece mesmo a história de mais de 500 anos da relação Brasil/Portugal, só que
no sentido inverso.
O que todas as pessoas deveriam saber?
Quando comecei o projeto de residência artística HS13rc em
autogestão para Lisboa, lancei esta declaração, de forma provocativa: “O artista não depende da instituição, O
ARTISTA É A INSTITUIÇÃO”, que acabou se tornando meio que um mantra para mim, e que penso que pode ser
aplicado à vida de qualquer pessoa, não apenas em seus aspectos profissionais,
mas de uma forma geral. Não é preciso autorização ou legitimação externa para
se criar ou se ter certeza de que seu trabalho tem valor. Precisamos nos
lembrar mais frequentemente disso, que todos temos o poder de começar uma micro
revolução pessoal, que sempre afetará algo ou alguém.